segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Um rapaz acorda de manhã com uma machado cravado acima do joelho, na coxa. Mais de metade da lâmina encontra-se já dentro da carne; fora está o cabo do machado e pouco mais.


O rapaz queixa-se de dores. São fortes, mas não insuportáveis. Mantêm-se nesse nível constante, no limite do suportável.

Da perna sai um fio de sangue mínimo. Por onde o rapaz passa vai ficando um rasto vermelho no chão, como se ele quisesse recordar às pessoas que sofria no momento em que passara por ali.

O rapaz tentara já arrancar, com as suas próprias mãos, o machado da perna, mas a lâmina estava tão enterrada na sua carne que ele percebeu ser impossível.

Pediu depois aos amigos mais próximos e eles tentaram, mas a lâmina não se mexia nem um centímetro, parecendo por vezes que o metal pertencia já àquele corpo, como se fosse um novo órgão, uma nova articulação, um tendão ou um osso suplementar.

Foi pelo mundo à procura de alguém forte o suficiente para arrancar a lâmina da sua perna.

Encontrou homens fortes; eles tentaram, mas falharam. Tentou as tecnologias mais modernas; falharam também.

Havia já desistido. Sentado no chão, resignava-se àquela dor, que incomodava mas não o impedia de viver. E foi nesse momento que uma bela rapariga se aproximou dele e, sem uma palavra, retirou, suavemente - muito suavemente - o machado da perna, pousando-o depois sobre a erva.

Nessa mesma noite, ela tratou--lhe daquela ferida, que ele já desistira de ver curada; e a ferida cicatrizou com uma rapidez invulgar. O sangue parou de cair da perna em definitivo, e os dois dormiram juntos como só se costuma fazer atrás dos bastidores dos contos de fadas.

É esta a história.

Só falta dizer que, na manhã seguinte, o rapaz que finalmente se curara da ferida acordou morto.

Gonçalo M. Tavares



Foi este o conto que li, ontem, na revista de Domingo do Correio da Manhã; numa manhã de sol mas tão cinzenta como as nuvens que ainda tenho a obscurecer-me o ser. Também eu não passo de alguém com um machado cravado numa perna...

6 comentários:

Bruno disse...

Ás vezes a força está onde menos esperamos, e por vezes perdemos-nos na sua procura quando o que temos de fazer é estar atentos ao seu aparecimento.
E por vezes tambem nessa procura cansamo-nos e desaprendemos a ser sem ela.

Sorriso :-)

Vanda Maio disse...

Gostei do conto que partilhas.

Aprende-se a viver com o que a vida nos dá, mas não se pode desistir de lutar pelo que se quer, mesmo que possa significar o fim.

Beijinho

Anónimo disse...

Mas tu acordarás morta, quando tiveres mais de 100 anos, pá!
Quando o machado já tiver mais ferrugem, que um casco de um barco estacionado em Leixões...

Minna disse...

Tenho a dizer que adorei o conto, que parece todo ele um pequeno conto de fadas. Porém, por estranho que pareça não sou muito boa a comentar o resto.

Porém, força.

=)

no. disse...

Talvez todos tenhamos um machado na perna em pelo menos uma parte da nossa vida.
Só que alguns conseguem tirá-lo à primeira tentativa.

Sardoal Eventos disse...

Já conhecia o poema. Gosto, particularmente, da parte do "acordou morto!"
Às vezes apetecia-me!